domingo, 30 de maio de 2010

CENTRO NERVOSO DE REVOLUÇÃO PLANETÁRIA


Sempre que vou ao subúrbio ou à favela entro em contato com a infância vivida no interior. Aconchego pleno na memória emocional latente. Ruas estreitas, casas próximas, gente perto. Quando atravessei a passarela sobre a linha do trem de Vigário Geral em direção ao Centro Cultural Waly Salomão na tarde de quarta passada, fui tomado por uma atmosfera de euforia e riso solto. Pluralidade expressa em cada palmo quadrado de território.

Hare Krishinas no começo da via a aquecer a alma e os instrumentos. Fitei os carecas com um sorriso no canto dos lábios. Eles fizeram o mesmo com o barbudo aqui. Muitas crianças a correr de um lado para o outro com a alegria escancarada na face. Algumas no caminho me pediam pra tocar na barba pra saber se era de verdade. Neanderthal urbano.

Em uns cem metros de caminhada me vieram sensações diversas. Era como se tivesse aberto um portal e eu fora transportado a outra dimensão. Senti claramente a luz mudar, a densidade do ar e a fina camada que me separava de um outro estado de percepção.

Um mundo de humanos a bailar energia pulsante por todos os poros. O baile sem máscaras havia tomado cada canto. O canto, a batucada, os sinos. Os sinais. Poucos passos adiante. O soco. Quadrilátero afroreggaeano com punho em riste. Mar de gente em frente ao fronte. Celebração. Mistura. Sentidos. Sons, cordas, corpos, tambores, vozes, amplificadores. Circo.

Conheci José Junior em 2003, no lançamento Da favela para o mundo. No livro, que conta a história do Grupo Cultural Afro Reggae, JJ deixa claro a importância de Waly na sua formação e na vida do GCAR. Lá já estava explícito a ideia da construção e o conceito do Centro Cultural: convergência e compartilhamento 24 horas por dia. Estar ali, naquele 26 de maio de 2010, era fazer parte da materialização de um sonho de transgressão e radical transformação social.

O Afroreggae inverteu a lógica de se fazer parceria. Todo mundo senta-se à mesa, discute, reflete e cria-se novas possibilidades de interação. Não existe os necessitados e os mecenas. Há pessoas com ideias, interesses comuns e o desejo de criar pontes onde se integrem classes sociais e culturas diferentes. E isso não é apenas discurso. Os caras fazem isso no dia a dia há 17 anos, num constante exercício de reinvenção. E subverteram a ótica de se pensar favela, negros e pobres neste país. No mundo.

Não me saem da cabeça as imagens das crianças a invadir a mil por hora, com sorrisos transbordados, os corredores, escadas, acessos, espaços, milímetros do gigante de concreto e sonhos, como que dissessem: isso aqui é meu quintal !

O interior daquela vigorosa estrutura geométrica erguida no centro da comunidade revela infinitas possibilidades de criação. Motor arterial ao pulsar de pensamentos e atitudes. Ali está a síntese. A fome. A simbiose aglutinadora de diversidades. A universalidade acessível a serviço da utopia. Parir um centro de referência desse porte é para quem sabe morrer e nascer diariamente. É a concreta expressão da alma afroreggaeana. Da vocação humana. Orilaxé !